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domingo, outubro 21, 2007

The Smiths - The Queen Is Dead - 1986


Principalmente na história da música pop, as coisas não são criadas do nada. Cada ritmo novo, cada ousadia nova, cada ícone novo existe para a maior parte da população por causa de um propulsor. Se os Beatles transformaram rock and roll em arte com "Sgt. Peppers...", é porque no ano anterior os Beach Boys os desafiaram com todas as orquestrações e musicalidade perfeita de "Pet Sounds". Quando os Sex Pistols chocaram com suas atitudes e verborragia de "Nevermind The Bollocks...", os Ramones já haviam definido os alicerces sonoros que os Pistols usariam para cuspir na cara da rainha. E se nos anos 80, quando o U2 lançou "The Joshua Tree", dando lugar na lírica ao sentimentalismo e altruísmo ao invés do hedonismo e destaque para as melodias de guitarra ao invés dos sintetizadores da new wave, um ano antes os britânicos The Smiths encheram um álbum de guitarras, críticas sociais, introspecção e poesia. A rainha cuspida seria então morta.

Formados em Manchester pelo vocalista e letrista Steven Patrick Morrissey e o guitarrista Johnny Marr, os Smiths pareciam recuperar uma imagem que tinha sido perdida há muito tempo. O encontro das guitarras elétricas com o lirismo, dos instrumentistas rebeldes e selvagens com uma voz intensa e dramática. Acompanhados do baixista Andy Rourke e do baterista Mike Joyce, os Smiths já moviam polêmicas desde o início por falar sobre homossexualidade e vegetarianismo em suas letras, e também serem acusados de incentivar assassinato e pedofilia. Mas o golpe final ainda estava por vir. No ano de 1986, os Smiths lançariam seu terceiro álbum, cheio de raiva contra o sistema vigente inglês regido com mão de ferro por Margareth Tatcher, onde o eu-lírico de Morrissey vive em um mundo pútrido que não tem medo de denunciar. O álbum afirma, "The Queen Is Dead". O fim da nobreza, da falsa ilusão de uma Inglaterra que supostamente tinha um alto nível de vida, ou motivos para orgulho.

Um álbum com essa inscrição e a figura de um nobre morto (na verdade, uma foto de 1965 do ator Alain Delon), já parece denunciar o que vem por aí - este foi um álbum daqueles que mudaram o curso da história da música contemporânea, da quebra com a corrente principal da música, mas tudo familiar nos refrões marcantes e na voz carismática do vocalista. Buscando inspiração no punk setentista e no mais básico rock dos anos 50 e 60, o álbum ainda causa uma forte impressão aos ouvidos por confrontar tantos sentimentos com os ouvidos do ouvinte - solidão, desesperança, tristeza, depressão... Se na década anterior a blasfêmia ocorria por meio do esporro, aqui são os climas desoladores e sufocantes que ditam as regras de um jogo que os anos 80 já sabiam terem perdido, e não adiantava ignorar, como a New Wave e o Hair Metal faziam, nem lamentar sobre, como o pós-punk fazia. Em cada verso se constatava que os Smiths foram uma das bandas-símbolo do grande vazio, dos protestos de paz e abertura das portas da percepção que, no final, deram apenas em filhos tristes que encontravam em homens como Morrissey, Robert Smith e Ian Curtis uma pessoa com quem se identificar em um mundo de deuses acima de nossos reles problemas.

Abrindo com um coral zombeteiro de vozes que logo é suprimido pela bateria, temos então a faixa título, "The Queen Is Dead", onde desde o início já se mostra o talento como riffman de Johnny Marr e a ótima voz de Morrissey declamando a letra que parece descrever a cena que deu resultado na capa do disco. Um mundo decadente, onde Mozz questiona a sexualidade do príncipe Charles, desafia e insulta a realeza, passa por garotos de nove anos vendendo drogas, bares que viciam e Igrejas que tomam até o último centavo dos fiéis. "A rainha está morta, garotos", declara o vocalista, "e é tão solitário no purgatório"...



"Frankly, Mr. Shankly" abandona a condição de pop mórbido da anterior e investe em um andamento de reggae, com destaque para o baixo de Andy. Mas Mozz não poupa o ouvinte de sua ironia ácida. Em pouco mais de dois minutos, o vocalista corajosamente ataca o mundo do show business dizendo que quer se tornar uma estrela da música e do cinema, dizendo que não quer ser mais qualquer um, mas ainda assume que a sua vida medíocre o torna mais feliz que uma vida de corrompidos valores que é o mundo das celebridades.

Pisando no freio, agora temos "I Know It's Over", uma angustiada balada sustentada por um ritmo lento e doces melodias, elemento sobre os quais Morrissey deita a voz para dar uma interpretação magistral. Sua emocionada voz critica a futilidade das pessoas, questionando "se você é tão engraçado, inteligente, atraente... por que você está sozinho esta noite?". Ele clama o nome da mãe ao sentir o peso do mundo caindo sobre as suas costas e os instrumentos imprimem uma montanha de intensidade, e Mozz segue cantando cada vez mais fragilizado. "O amor é natural e real, mas não para pessoas como você e eu", declara ele em um dos versos mais fortes da canção.

"Never Had No One Ever" mantém o clima carregado no álbum, mostrando uma música cadenciada, com uma forte pegada da bateria e guitarras soando altas, graves, quase que em tom de alerta. Na letra, Morrissey afirma que sua vida inteira foi um pesadelo, olhando para a casa da pessoa pela qual é apaixonado, mas sentindo repulsa de si memso por sentir vontade de invadir. Ao final da canção, a voz do cantor torna-se fantasmagórica, parecendo ser ser suprimida pela guitarra cada vez mais alta, enquanto lamenta nunca ter tido ninguém.

Um dos clássicos da carreira dos Smiths, essa é "Cemetry Gates", com as melodias menos tristes até então; Mozz narra uma ida ao cemitério, em um "tenebroso dia ensolarado". Ele se lamenta por ver todas as lápides, refletir sobre todas as vidas encerradas, cada qual com dramas, paixões e histórias distintas, mas todas com o mesmo fim. O eu-lírico admite ficar com vontade de chorar, sentindo vontade de ir embora do cemitério para não se deprimir mais. Uma das músicas mais perfeitas de todo o álbum.

"Bigmouth Strikes Again" continua com a overdose de hits; dessa vez com melodias mais introspectivas, mas a bateria deixa um ritmo inquieto para Marr encher cada poro da música com exuberantes guitarras. Essa é uma canção direta sobre culpa. Morrissey declara sentir-se a versão moderna de Joana D'arc, atirado ao fogo por seus erros, por coisas que não foi realmente sério em dizer, ou que não queria dizer. A culpa é tanta que o mesmo afirma, "Eu não tenho mais direito de assumir meu lugar entre a raça humana".

Uma das letras mais fortes se faz presente em "The Boy With The Torn On His Side". Um cadenciado rock com uma das melhores performances de Johnny Marr (este, um dos mais importantes guitarristas dos anos 80, não por fama, mas sim por influência exercida nas gerações subsequentes). É contada então a história de um garoto literalmente atormentado, sempre com um "espinho ao seu lado". O eu-lírico não entende porque não acreditam em sua história, que para ele é tão real: do garoto com um desejo homicida e saqueador por amor, que mesmo tendo esse desejo nos seus olhos, continua desacreditado.

Nem as instituições religiosas escapam da visão de Morrissey que tudo está podre, e a prova disso é a canção "Vicar In A Tutu". Nela, Morrissey conta estar roubando chumbo do teto de uma igreja, quando olha para baixo e vê o vigário vestido com um saiote de bailarina. Mesmo chocado, entende que ele apenas quer viver a vida assim. Mais tarde, parece ficar chocado com a hipocrisia do vigário em taxar os outros de corrompidos, sujos e arrogantes, enquanto o mesmo tem segredos muito piores. A história é narrada por límpidas guitarras e uma bateria que segue trotando pela música inteira, e no final, tudo acaba em suspenso, quando Morrissey mistura a si mesmo com o vigário.

"There Is A Light That Never Goes Out" tem um valor especial para este que vos escreve. Na minha opinião, é a maior obra prima da carreira do quarteto de Manchester. Todos os elementos do álbum vem à tona aqui. A cozinha precisa, as lindas melodias de guitarra, as vocalizações marcantes e a lírica sublime de Morrissey somando-se em uma música perfeita da introdução, passando por verso e refrão, e chegando até o final sem perder o fio da meada. Na letra, Mozz declara que quer sair, ver as pessoas, ouvir música, enquanto o interlocutor dirige, ele declara que não importa nem se um caminhão de dez toneladas ou um ônibus de dois andares bater neles - "Que jeito divino de morrer (...), morrer ao seu lado/o prazer e o privilégio seriam meus". E é aí que percebemos qual é a luz que nunca se apaga a qual o título se refere. Merece estar em qualquer lista das canções mais emocionantes já feitas.

E fechando o disco temos a décima e última música "Some Girls Are Bigger Than Others". Irônico, Morrissey declara em um típico e redondo pós-punk, acompanhado de backing vocals espectrais, a obsessão sexual a qual todos os homens são submetidos. "Da idade da pedra até a era do desemprego, existe apenas uma preocupação, que eu acabei de descobrir: Algumas garotas são maiores que as outras". Citando e debochando de figuras históricas como Marco Antônio e Cleópatra, Mozz questiona inteligentemente toda essa cultura reprimida por tabus, que despreza o romance, trocando-o pelo hedonismo puro e simples. Um grande final de um grande disco.

Como foi dito, o U2 só chegou ao posto dos grandes e tiveram espaço para mostrar sua postura messiânica porque o caminho já havia sido pavimentado sonoramente antes por um grupo que pouco durou, consumido pelos problemas com a gravadora, bebida, drogas e conflito de egos, mas que deixou como legado uma influência enorme - influenciando todas as bandas pós-punk do mundo, incluindo aí todas aquelas do levante de Brasília. Até hoje, quando hormonais bandas explodem no mundo cibernético através do MySpace, ouvem-se traços da criatividade de Marr e da ousadia de Morrissey.

A rainha pode até ter morrido, os Smiths podem até ter acabado, Margareth Tatcher pode até não mandar mais na Inglaterra, mas a sombra da banda continua forte e presente no mundo atual. Os anos 80 realmente foram anos superficiais e vazios, de futilidade e sufoco, e poucas bandas representaram isso tão bem quanto os Smiths. Dez pérolas pop que ajudarão a entender (ou ao menos pensar sobre) a mais distópica e cruel das realidades - aquela que vivenciamos.